sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Doador de um olhar


Doador de um olhar
(Gilberto Dimenstein)



Submetido a vários meses de sessões de quimioterapia, o designer gráfico Vincenzo aproveitava o tempo disponível no hospital para desenhar e contar a história de personagens anônimos enfrentando a morte. Era um misto de diário de viagem, notas autobiográficas e reportagem sobre uma dimensão quase invisível da solidão cotidiana. "Desenhar era um jeito de resistir", dizia, na condição de paciente. Como artista, porém, aprendia a descobrir a beleza estética na resistência à dor. "É a vontade de seguir em frente que mostra nossos limites." Sua tragédia tinha um toque irônico.
Nascido em uma pacata cidade medieval italiana com 60 mil habitantes (Ascoli Piceno), Vincenzo procurava, em seus desenhos, extrair beleza do caos paulistano - assim como fazia no hospital. Preferia morar no centro da cidade. "Daqui eu sinto toda a energia paulistana."
Esse olhar produzia estranheza. "As intervenções de Vincenzo causaram ruído em meio ao noticiário cinzento. Elas nos davam notícias diferentes da cidade. Notícias necessárias. Falavam de casos e coisas que escapam aos olhos e ouvidos que se atropelam nas urgências da metrópole. Criaram um oásis", comentou o escritor Marçal Aquino, um dos observadores da paisagem caótica da cidade.
Vincenzo insistia na ideia de que era possível ver o belo nesse tumulto - talvez por seu olhar estrangeiro. "São Paulo é uma cidade que não se quer ver, que procura fugir de si mesma." Ele ia buscando ângulos e formas inusitadas urbanas, enquanto colecionava casos de personagens longe do mundo das celebridades. O câncer levou-o a virar um desses seres anônimos, invisíveis num hospital, obrigados a encarar o pior de uma cidade. Natural, portanto, que tivesse, nos desenhos, de se retratar, esquálido, quase irreconhecível. "Os instantes em que estamos bem tornam o viver muito mais belo. Qualquer coisa vale comemoração. Um raio de sol entrando pela janela, por exemplo. Uma flor perdida num canteiro sem graça."
Depois do fracasso de medicamentos tradicionais, testou remédios em fase de experiência - uma chance para desenhar seu novo médico. Com esses remédios, Vincenzo teve alguns momentos de esperança, a tal ponto que chegou a viajar para Nova York. Mas, na volta, parou na Itália e sentiu-se mal. Imaginou que estaria mais seguro na cidade que adotou do que na terra em que nasceu. Preferiu retornar a São Paulo, de onde, no hospital, reclamava da estética neoclássica de prédios novos. "É um horror." No sábado passado, a guerra acabou. Tinha pedido para que doassem o coração e os olhos. O coração já não servia. Mais do que seus olhos, acabou doando um olhar.
Com seus desenhos, muitos aprenderam a descobrir essa metrópole e o encanto de seus personagens anônimos, capazes de mostrar a beleza pela resistência. Talvez seja mesmo a única forma de olhar a beleza nesta cidade.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007


Dança no Silêncio Cósmico



Lá fora a Lua, envolta em placenta luminosa, crescia, alimentando-se do amor de Aquila e de Orítia. Seria ela a iluminar os sonhos dos amantes? Ou seria o sonho dos amantes a iluminá-la? Embalados pela música da noite - o silêncio - dançavam valsa no éter da madrugada. No céu, um coral de estrelas entoava hino estranho, etéreo, cheio de sustenidos a enchê-los de mil asas. Do espaço mais profundo, lá dos confins do Universo (se é que havia "confins" e limites), Eco da criação fazia-os renascer a cada um daqueles passos.
Havia um chão. Debaixo deles, a Terra os amparava e lhes dava raízes. A dança, feita conjunção de forças cósmicas e telúricas, no entanto, guiava-os levitando a um mundo novo. Viam-se ali, valsando no vazio, a cada um daqueles passos construindo novo mundo, realizando sonhos, tornando palpáveis as mais loucas utopias.
Nos pólos, auroras boreais e austrais iluminavam com matizes ímpares os gelos que já não eram mais tão eternos. Reflexos astrais, os corpos de Aquila e Orítia transmutavam-se a cada instante, fazendo-se reais, tornando o que era potência, ato; o que era intenção, ação; o que era, simplesmente, verbo, carne. Nada os detinha naquele caminho novo, pulsante, cheio de vida e de amor.
Livres. Eram livres na noite nua. Faziam-se crus, ali, diante da Liberdade. A noite era nua e crua. Um sentimento intenso unia-os num só e mesmo ser, alado, feito pássaro divino, criador, transformador. O mundo desenrolava-se a seus pés dançantes, voejantes.
Em metamorfose singular, corpos unos transformavam-se num só sopro de vida. De larvas rastejantes fizeram-se crisálidas coloridas e, disso, borboletas dançantes diante do arco-íris da gênese de novo mundo, melhor, perfeito.
Novos horizontes, um a um, descortinavam-se diante de seus passos a princípios vacilantes. Não... Seria possível? Um caminho de luz deixavam atrás de si; e seres lindos os seguiam, reverentes, como a confirmar seus votos, cercando-os de auréola colorida...
O Sol, radiante porém tímido diante da noite, ouvindo pensamentos, sugeria novos passos iluminantes. Eles pensavam, e sua dança era pensamento que se plasmava em Amor sem fronteiras , fazendo infinito o que antes era finito.
Alheias aquilo tudo que acontecia lá no céu, na Terra crianças brincavam de cabra-cega. Procurando a felicidade umas nas outras rodeavam, sem querer imitando os passos daqueles que lá, tão longe, faziam-se zodíaco e destino.
Porque como as crianças, Aquila e Orítia estavam cegos. E justamente por isso amavam: por não pensar, por brincar, por se fazerem um ao outro crianças aladas.
Aurora de uns, crepúsculo de outros, esse era o ritmo. A dança era giro, era círculo, era vai-e-vem sem fim a levar para sabe-se lá onde sentimentos que despertassem e se transformassem em certezas do coração.
Portador de luz, farol a guiar os navegantes da vida, o Sol se acumpliciava com a Lua. De um lado um; doutro, transformando realidades daqueles que inda dormiam, aguardando o amanhecer, a Lua promovia o despertar das crisálidas dormentes. Acordavam todos, borboletas voando, povoando de novo um mundo antes exausto, e nesse instante um mundo que se fazia novo e se reerguia. E SE FEZ!


Cláudia Maria Rodrigues

domingo, 29 de julho de 2007

Nada Dura...

Quando criança, admirava as árvores maiores. A mangueira no quintal vizinho, encantava-me com sua robusta folhagem, escondendo entre os ramos e galhos um sabiá teimoso, repetitivo,o sabiá das cinco da tarde que cantava e o eco respondia...Então sentava meu pequeno corpo na sarjeta, cotovelo nos joelhos desnudos e esfolados, queixo apoiado nas mãos e o tempo parava...
Naquele preciso momento, era como se todo o mundo rodasse, as pessoas se movessem, os ponteiros girassem nos mostradores do relógio...mas como também se a mangueira e a criança embevecida se tornassem pontos não mutáveis na natureza, um ponto fixo no complexo das coisas cósmicas, pontos não movente..nem tudo nem nada, nem bem nem mal, nem erro nem verdade, medo ou esperança, acato ou desagravo...nada! Apenas a sensação da infinitude de um momento que eu só saberia finito na idade adulta.
Ilusão! O eco do sabiá não era eco nem nada, era outro sabiá mesmo. E a criança sentada na sarjeta seria desligada de seu momento mágico pelo ralho da mãe, a julgar pelo tom de voz, ou banho ou safanão daqueles.
Pronto! O vento veio, levou embora o sabiá pra outro terreiro, as nuvens mudaram de forma e a finitude fez valer sua inexorabilidade.
A criança cresceu e ficou a certeza: Nada, absolutamente nada é eterno. É o óbvio, mas não sei bem porque essa obviedade conforta. Se a felicidade dura um só momento, a dor também é efêmera."Se o tempo atreve-se a colunas de mármore,quanto mais a corações de cera". Frio e sofrimento hoje...sorriso e sol amanhã. Desavença agora, concórdia logo depois...e depois...Saber disso faz um bem danado à alma, hoje despedaçada...amanhã inteira e plena outra vez.!

Cláudia Maria

sábado, 28 de julho de 2007

Folhas Soltas ao vento

Folhas Soltas ao vento

Aquila e Orítia

Pequena história de um Amor Perdido


Aquila, um belo cavalo cósmico cansado de procurar por Orítia, sua amada, entregara-se à contemplação do universo que se desfazia.
Fora-se a morada que lhes servira de berço e que alimentara com seus fluidos etéreos a paixão que os fizera um só ser.
Ia-se transformando em pontos de luz o mundo que os alimentara.
Fora-se ela, num daqueles pontos, e perdera-se em algum lugar que ele deveria encontrar. Animado pelos sons de uma flauta invisível que lamentava o caos e que lhe pedia a ordem, percebeu sopro sutil que lhe mostrou um caminho, que lhe deu um norte. Triste, sentiu novamente o calor vital a percorrer-lhe as crinas, as belas asas abriram-se e se pôs a voar.
Cavalo Alado e guiado pela felicidade de um reencontro, a viagem o levou a remoto planetinha azul chamado Terra. Parou e observou. Antes de seguir seu caminho, uma reverência ao Universo que o guiara. Encontraria lá, naquele lugar, a amada que perdera?
Invisível aos olhos daqueles que habitavam aquela terra estranha, fazia-se ver apenas a seres especiais que o tornariam conhecido como "Pégasus" e que o integrariam à mitologia.
Era livre como livre era a terra que o acolhia e a suas asas saudosas de amor.
Aqui e ali, pelos prados que ainda se estendiam quase ilimitados, a Natureza soprava-se nos ouvidos canções que o estimulavam a seguir...
Como se o que seguisse utopia fosse. A madrugada, sobretudo, fazia-lhe todos os dias um convite ao reencontro com seu amor perdido. Gotas orvalhadas de luar molhavam seu pêlo sonhador.
Por cada um daqueles pelos que cobriam seu corpo buscador, a seiva vital - ele sabia - era o Amor. Dependia dele controlar seu medo diante da noite. A intensidade das forças cósmicas que o haviam lançado em sua busca servia-lhe sempre como ensinamento: do alto viria sua perseverança.
Enquanto Áquila percorria o mundo com suas asas, em algum lugar Orítia enviava-lhe um pensamento...
Na Solidão da noite eterna, Orítia sonhava, sonhava com um príncipe Alado que se perdera na imensidão estelar..Onde estaria teu sonho alado? Por quais estradas trilharia? Precisava encontrá-lo, pensava
O Universo cantava pra ela, respondendo às suas súplicas, ela que um dia perdera-se na tempestade das ilusões mundanas, agora estava prestes a reencontrar seu igual, alma alada que ficara para trás num Universo distante... Mas agora o sentia perto, bem perto, quase podia ouvir seu respirar e seu coração esperava.
Dos confins do Universo soava um tambor invisível que a convidava para uma dança secreta, uma dança fluida e sensual, pensava nele e dançava, uma leve ritmada dança, e a cada passo flutuava, e ele , seu príncipe , se aproximava...
A magia do reencontro se formara, estava feita! E agora esperava um convite do cosmos, para que se juntasse aquele que tanto almejava , a cada passo que dava , o amor ausente, antes encantado, se materializava diante de teus olhos, mas não podia tocá-lo, apenas olhava e se sabia sua.
Ela sentia que os Dois .. em algum lugar fora do tempo se olhavam, as estrelas tinham por testemunha, as galáxias os rodeavam, e tudo conspirava a seu favor. A cada olhar que trocavam, um perfume emanava de suas almas belas, suave a princípio, mas tornou-se tão devastador que embriagava..e ela soube que era o perfume do Amor Maior, um amor além do tempo e do espaço, além de todas as causas e todas as guerras...além do sorriso e da primavera, do sol, da lua e do mundo . E se deixaram ficar , fundidos um no outro, naquele lugar mágico, mergulhados na Noite Eterna.

Cláudia Maria Rodrigues